28 de outubro de 2007

Mais um off-scrap: Tropa de Elite

Copio aqui o que escrevi no fórum do SBB sobre o filme:

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Então, fui ver Tropa de Elite com a Cristina no cinema. O filme é absolutamente genial.

Mas, curiosamente (quer dizer, não tão curiosamente assim, depois explico o motivo), boa parte do debate sobre o filme está centrado numa coisa que eu considero secundária: o comportamento do capitão Nascimento, as torturas e tal. Eu não acho que a alma do filme esteja aí.

Na verdade, o principal recado do filme está em duas cenas emblemáticas. A primeira é aquela em que o capitão Nascimento esfrega a cara do "estudante" no corpo do traficante que o Bope acabou de matar, perguntando "você sabe quem matou esse sujeito?". A outra cena é aquela em que o tenente Matos interrompe a passeata em homenagem à ONGueira executada pelo Baiano. Porque o principal do filme é justamente isso: a classe média/média-alta/alta consumidora de drogas é que financia o tráfico. Ora raios, de onde vem a grana que o tráfico usa para comprar armamento que, em qualquer outro país, só é usado em guerra? Certamente não é do rendimento das ações da Vale que os traficantes compraram usando o FGTS. E também não é dos trocados que os meninos de rua pagam por uma pedra de crack; é da venda da droga que sacia o vício daqueles que podem pagar bem por ela.

E isso explica por que, como eu disse no começo, tem gente que prefere desviar o debate para as torturas praticadas pelo capitão Nascimento - para não ter de admitir qual é o maior aviso que Tropa de Elite passa. As pessoas que não gostaram do filme e o criticaram publicamente podem ter vários motivos para isso, mas aposto minha Crop-a-Dile que muitos dos que malham o filme agora fazem isso porque a carapuça serviu. Não gostaram de ser desmascarados como financiadores do tráfico.

Pois bem, daí deriva uma segunda discussão, que o filme não aborda. E se legalizar a venda e o consumo de drogas, a violência ligada ao tráfico não acabaria?

Aí é que está: então teria que se legalizar tudo, porque se certas drogas (vamos supor, as mais fortes) continuassem ilegais, o tráfico continuaria existindo. Se, por exemplo, fosse permitido comprar só uma certa quantidade (como já vi sugerido em comunidades de Orkut), o tráfico continuaria existindo para suprir a necessidade/vontade do viciado que desejasse mais que a quantidade máxima permitida para venda legalizada. Então a legalização teria de ser ampla, geral e irrestrita.

Depois, que a legalização e qualquer política de redução de danos, como distribuir seringa para viciados não se contaminarem com o HIV, esconde uma grande perversidade que vou explicar mais adiante.

Todos concordamos que a droga acaba com quem a usa. Pois bem, aí vem o cara da redução de danos e diz "ah, vamos distribuir seringas, aí o viciado pode se entupir de cocaína, mas pelo menos não pega Aids", ou "ah, vamos legalizar, porque aí o povo vai se entupir de droga, mas pelo menos não vamos ter mais bala perdida em confronto de polícia e traficante". Claro que não dizem com essas palavras, mas na prática é isso aí.

O que o cara da redução de danos faz é dividir o mundo em dois tipos de pessoa: o que é gente boa e não merece pagar pelas burradas dos outros (por exemplo, o cara honesto que não merece levar uma bala perdida num tiroteio, ou a namorada do viciado em droga injetável que não merece pegar Aids do namorado que compartilhou seringa); e o que pode se degradar à vontade, desde que não prejudique o pessoal do primeiro grupo. "O sujeito quer cheirar cocaína até sair pela orelha? Problema dele; importa é que não passe doença pra ninguém". Só que, para quem acredita na dignidade de todo ser humano, é inaceitável dividir o mundo assim.

Além do mais, eu particularmente tenho para mim que uma das funções da lei é proteger o cidadão - inclusive protegê-lo de si próprio. Muita gente pede a legalização de certos comportamentos ou atitudes "porque todo mundo já faz mesmo", que continuar proibindo isso ou aquilo é hipocrisia, utopia, sei lá eu. Mas se legalizarmos o consumo de drogas, que Estado é esse que permite que a pessoa acabe consigo mesma?

E, à medida que se vai permitindo isso ou aquilo, começa uma espiral de degradação da sociedade. Hoje você permite o comportamento x; em 2017, vão começar a pressionar pela legalização do comportamento y, que em 2007 é considerado uma aberração; em 2027 vão querer permitir o comportamento z, que em 2017 era visto como absurdo; e por aí vai, até regredirmos à barbárie completa.

Basta ver, por exemplo, o que o Estado alemão fez na década de 30: era permitido discriminar judeus (e fazer horrores com eles); ou o Estado norte-americano e sul-africano até poucas décadas atrás: era permitido discriminar negros. Quanto uma lei determina o que é proibido ou permitido, é como se o Estado traçasse uma linha dizendo "passou daqui, é ruim para você, ou ruim para a sociedade". Nesses países em que se afrouxou a linha, sempre foi para o lado mais permissivo: era permitido matar, era permitido discriminar. E agora, querem justamente que o Brasil faça a mesma coisa: mude a linha para o lado da permissividade. É coisa de quem não pensa nas conseqüências.

Desculpem o post longo, mas meu objetivo é fazer pensar mesmo.

3 comentários:

Sue disse...

Bravo, meu amigo!

As pessoas CISMAM em querer consertar a sociedade estragando-a mais. Porque é mais fácil permitir que coibir, passar a mão na cabeça que educar.

Isso, é claro, até a hora que o monstro criado resolve levantar sua cabeça feia a morder alguém.

Muito carinho. :)

Carmem Lucia Calvo disse...

Marcio, você disse TUDO!!!!
Achei muito legal suas páginas sobre os jogos!

Georgia Visacri disse...

bravo!!!!
Não poderia concordar mais com cada linha que você escreveu. Ainda não tive a oportunidade de ver o filme, mas meu marido assistiu e me passou as mesmas impressões que você.
bjusssss